Um choque de concorrência nos portos brasileiros

O governo apresentou um projeto para tornar os portos mais eficientes e atrair investimento. O clamor contrário já surgiu. Mas é uma oportunidade que o país não pode perder

São Paulo – Em 28 de janeiro de 1808, quatro dias após a família real portuguesa desembarcar em Salvador, o príncipe regente dom João de Bragança assinou uma carta régia que abria os portos brasileiros para o mundo. Até então, mercadorias recebidas e enviadas pelo Brasil tinham de passar por Portugal. Foi uma medida que revolucionou o comércio exterior brasileiro.

 Não foi por acaso que a presidente Dilma Rousseff disse que estava dando continuidade à abertura promovida por dom João VI durante o anúncio, em dezembro, da Medida Provisória no 595, que muda a regulamentação do setor portuário brasileiro.

A chamada MP dos Portos, agora em tramitação no Congresso, pode provocar uma nova revolução no segmento porque permite que a iniciativa privada opere portos que possam competir com os públicos e cria novas regras para as concessões dos portos públicos — em vez de entregar um terminal à empresa que pagar mais, o vencedor do leilão será o que oferecer a menor tarifa combinada com o melhor serviço.

“Ampliar a concorrência foi a forma que o governo encontrou para induzir investimentos e, com isso, aumentar a capacidade e a efi­ciência dos portos com custos menores”, diz Luiz Vieira, vice-presidente da consultoria Booz&Company, que realizou um estudo sobre o setor.

Com a abertura para novos investidores e a mudança nas regras para quem já está estabelecido, o governo pretende, em português coloquial, dar uma chacoalhada no setor. Espera-se que as mudanças atraiam investimentos de 55 bilhões de reais até 2017. Para comparar: nos últimos 11 anos, o governo investiu apenas 3 bilhões nos portos.

“Teremos liberdade de buscar áreas para novos terminais de contêineres”, diz Carlo Bottarelli, presidente da Triunfo, grupo controlador do primeiro porto privado do país, o Portonave, em Santa Catarina. “A região de Belém e o Rio de Janeiro têm espaço para um novo porto”, diz Bottarelli, sem admitir interesse nessas áreas.

O sistema portuário brasileiro está entre os piores do mundo. Num ranking com 144 países feito pelo Fórum Econômico Mundial, o Brasil ocupa a 135ª posição no item qualidade dos portos. Por que estamos tão mal? Em resumo: nossos portos são mais caros e mais ineficientes do que os de países desenvolvidos e emergentes.

“O custo dos portos brasileiros é exorbitante”, diz Julian Thomas, superintendente no Brasil da Hamburg Süd, uma das maiores transportadoras do mundo. Operar no porto de Suape, em Pernambuco, custa cinco vezes mais do que em Cartagena, na Colômbia, e o triplo de Hamburgo, na Alemanha.

De acordo com Thomas, um contêiner da empresa fica, em média, 12 dias parado em Santos, ante três em Hamburgo. “Aumentar a quantidade de portos é essencial para termos preços competitivos com outros países”, afirma Thomas.

Apesar das boas intenções, dias após o anúncio de Dilma, a MP começou a ser alvejada. Executivos de empresas que operam em portos públicos reclamaram que a criação de novos terminais fora das áreas públicas provocaria desarranjo no setor.

Esses portos novos, segundo eles, exerceriam concorrência desleal porque teriam custos menores de mão de obra — pois a MP dá mais liberdade de contratação aos novos operadores — e poderiam usufruir da infraestrutura existente nas áreas próximas aos portos já estabelecidos.

“O jeito escolhido pelo governo para aumentar a oferta pode ser predatório para nós”, diz Mauro Salgado, diretor comercial da Santos Brasil, concessionária de um dos terminais na área pública de Santos. Outra reclamação é que foi criada uma insegurança jurídica no setor. A incerteza foi alimentada depois que a Secretaria de Portos divulgou uma lista com 159 áreas cujos contratos vencerão até 2017 e poderão ser relicitadas. Em algumas áreas há operadoras que fizeram investimentos contando com renovação das concessões — o temor é que os investimentos não sejam ressarcidos. Como o governo recentemente usou mão forte para renegociar concessões no setor de energia, o medo é compreensível. “Os contratos serão respeitados”, diz Mario Povia, diretor da Antaq,  agência que regula o setor.

Coube aos sindicatos de trabalhadores dos portos elevar a temperatura publicamente. Sob o argumento de que a nova regra vai provocar demissões em massa, eles articularam sua base política no Congresso. A MP recebeu 645 emendas — um número recorde —, a maioria questionando a mudança na mão de obra. Os trabalhadores dos portos públicos são ligados ao Órgão Gestor de Mão de Obra (Ogmo), uma espécie de sindicato portuário.

Os trabalhadores são requisitados para serviços específicos conforme a necessidade dos terminais. A MP permite aos portos privados a contratação de pessoal fora do Ogmo, fugindo ao controle da entidade. Além do lobby no Congresso, os trabalhadores vêm promovendo greves. No dia 18 de fevereiro, portuários de Santos invadiram um navio chinês, impedindo a descarga.

Já o setor industrial recebeu a medida com palmas. “Apoiamos a MP porque acreditamos que, com ela, teremos portos eficientes e redução do custo do comércio”, diz Robson Andrade, presidente da Confederação Nacional da Indústria.

O GTFoods, fabricante de alimentos com receita de 920 milhões de reais por ano, ilustra as dificuldades. A empresa exporta 4?000 toneladas de frango por mês e importa 1?000 toneladas de insumos.

“Nossos custos portuários são 25% superiores aos de nossos concorrentes externos”, diz Edemir Trevizoli, gerente de exportação do GT, que utiliza os portos de Paranaguá, Santos e Rio Grande. Os novos investimentos são necessários não só para melhorar esse tipo de situação como também pelo que está por vir: os terminais operam próximo do limite ideal e a movimentação de carga deve dobrar até 2031.

O Congresso tem de decidir sobre o projeto até 16 de maio, quando o texto perde validade. O governo sabe que a luta será dura e diz que vai tentar preservar a essência do projeto. “Estão em jogo questões trabalhistas, políticas e econômicas”, diz o senador Eduardo Braga, relator da comissão que analisa a MP. Espera-se que, no fim, prevaleça o interesse do Brasil.

(Humberto Maia Júnior | Exame)

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