Em breve, a Eudora vai bater à sua porta

Grupo Boticário cria marca paralela para entrar no cobiçado mercado de venda direta

A necessidade de criar uma estratégia de vendas diretas, para concorrer com pesos pesados como Natura e Avon, ronda as decisões do alto escalão do Boticário há pelo menos uma década. Durante anos, o grupo paranaense fez pequenos testes: permitiu a venda em empresas e fez um projeto piloto com catálogos no interior de São Paulo e em Pernambuco. Mas a proposta esbarrou sempre no dilema de canibalizar a rede de lojas. O tempo passou, e a ideia ficou no papel. Após uma série de falsos inícios, a empresa agora virou a estratégia de cabeça para baixo: vai iniciar a venda de porta em porta até abril deste ano, com um nova marca, batizada Eudora.

A criação da holding Grupo Boticário, há dez meses, deixou claro que o conglomerado poderia fazer um movimento rápido para iniciar as vendas por catálogo. A reorganização inclui também a abertura de uma empresa para desenvolver negócios, a GKDS, para a qual foram contratados vários executivos com passagem por empresas-símbolo de venda direta, como Tupperware, Avon e Natura. O lançamento e o marketing da Eudora, que será um negócio independente dentro da holding, ficará sob a batuta do executivo Claudio Oporto, vindo da Natura.

A estratégia da Eudora é atualmente desenvolvida por 100 profissionais, a maioria deles alocada em um escritório que funciona como "quartel-general" em São Paulo. A linha para venda de porta em porta é tratada pelo grupo como projeto a ser guardado a sete chaves: os funcionários envolvidos assinaram contratos de confidencialidade e a estrutura de vendas será montada por uma consultoria internacional, para evitar que detalhes venham a público. O presidente do Grupo Boticário, Artur Grynbaum, só concordou em falar com o Estado depois que a reportagem apurou no mercado detalhes do projeto.

Expansão. De acordo com Grynbaum, o desenvolvimento da linha para venda direta é resultado da confluência de dois fatores: a maturação do sistema de franquias do Boticário, que limita a possibilidade de abertura de novas lojas, e o bom momento econômico do País, que estimula o consumo de cosméticos – mercado cujo movimento é estimado em US$ 28 bilhões ao ano, segundo dados da consultoria internacional Euromonitor. "Há uma oportunidade no setor de bens de consumo e decidimos não misturar essa nova estratégia à marca O Boticário, que continuará a seguir seu caminho", explica o executivo.

Segundo o presidente do Grupo Boticário, o catálogo da marca Eudora trará inicialmente apenas artigos de perfumaria e cosméticos – no futuro, entretanto, a marca deverá vender outros produtos de apelo ao público feminino, como lingerie, segundo apurou o Estado. A linha Eudora será produzida na fábrica da companhia, em São José dos Pinhais (PR). Grynbaum explica que a nova demanda poderá ser acomodada em virtude do projeto de expansão da capacidade de produção e distribuição do grupo, que consumirá investimentos de R$ 170 milhões no período entre 2009 e 2012.

O executivo afirma que os recursos para a contratação de funcionários e o lançamento da nova marca no mercado, cujo valor não foi revelado, foram gerados pelo caixa do grupo – ele desmente comentários de que teria havido venda de ativos para financiar a empreitada. Grynbaum não revelou como será o lançamento da linha para venda direta, mas adiantou que, ao longo do tempo, a comercialização da Eudora será nacional.

Público-alvo. Artur Grynbaum evitou especificar o público-alvo da Eudora, afirmando apenas que será "um segmento diferente do já atendido por O Boticário". Entretanto, segundo especialistas na área, o portfólio da nova marca deverá ser mais popular que o vendido nas franquias, uma vez que a classe C é consumidora cativa do segmento de porta em porta.

Na opinião de Marcelo Pinheiro, sócio-fundador da consultoria especializada em vendas diretas DirectBiz, a venda direta pode conviver "pacificamente" com as mais de 3 mil lojas da rede O Boticário no País. Ele afirma que, provavelmente, a linha terá um perfil de preço acessível, como reza a cartilha da venda por catálogo. "O portfólio pode até ter alguns itens de mais valor agregado, como é o caso da linha Renew, da Avon, mas a estratégia não é baseada neles", explica Pinheiro, que já foi executivo das marcas Natura e Jequiti.

O grupo paranaense recentemente testou a força dos produtos mais populares ao criar, para as lojas de O Boticário, duas linhas de custo reduzido: a Intense, de maquiagem, e a Cuide-se Bem, de cremes e produtos para o corpo, com preços de 20% a 60% inferiores aos das opções tradicionais. Embora a empresa não revele detalhes sobre a participação de linhas específicas em sua receita, nos últimos dois anos, quando as opções "emergentes" foram incorporadas ao seu portfólio, o faturamento teve expansão anual superior a 20% (veja quadro).

Para o consultor especializado em franquias Marcelo Cherto, presidente do Grupo Cherto, a migração do grupo para as vendas diretas era inevitável. "Hoje, é o consumidor quem decide como quer comprar, e não a empresa que define como quer vender. A empresa tem de estar disponível em diferentes formas: com lojas próprias, catálogos e venda por internet, além de ficar atenta a opções que estão para surgir, como a venda a partir das redes sociais", afirma.

Cherto diz ainda que o movimento do Boticário em direção à venda por catálogo veio até tarde demais. "O fundador da empresa, Miguel Krigsner, tinha uma resistência natural em mexer no formato que se mostrou vencedor por três décadas. A ideia da venda de porta em porta começou a ganhar força quando o Artur (Grynbaum) assumiu a presidência, em 2008", afirma.

Segundo o especialista, o estrangulamento do formato de lojas franqueadas da rede virá mais cedo ou mais tarde – não apenas pelo grande número de unidades já em operação, mas também pelos investimentos necessários nesse canal de vendas. "Esse potencial inevitavelmente vai se esgotar. Não existem mais pontos físicos e o custo, especialmente nos shoppings, virou algo obsceno."

Multiplataforma. O consultor diz que o movimento em direção à atuação "multiplataforma" deixa o Grupo Boticário em vantagem em relação aos concorrentes – e pode representar uma chance de a empresa se aproximar da participação da Avon e da Natura nas vendas brasileiras de cosméticos.

Para Cherto, é mais fácil para o Boticário implantar uma estratégia de venda direta do que para a Natura, por exemplo, abrir lojas depois de se consagrar pela venda por meio de representantes. "As vendedoras têm uma relação muito forte com a marca que representam. A abertura maciça de lojas pode ser vista como uma traição, o que pode se refletir numa migração de representantes para a concorrência", acredita o especialista. "É por isso que a Natura só tem lojas em aeroportos e unidades para as clientes experimentarem o produto, que funcionam como ponto de apoio para as consultoras."

Ao criar a Eudora para inaugurar o formato de vendas, diz Marcelo Cherto, o Grupo Boticário deve eliminar o fantasma que assombrou a empresa ao longo dos anos: o descontentamento dos franqueados com a possível concorrência de catálogos com produtos da marca principal.

Para garantir o bom relacionamento com os lojistas diante da criação da segunda marca, a empresa mantém nos planos o desenvolvimento de uma ferramenta de vendas diretas para O Boticário. O objetivo é que a estratégia seja uma oportunidade de renda extra para os franqueados – cada um deles receberia uma área geográfica para trabalhar o "porta a porta".

Em fase de testes há cerca de um ano, ainda antes de a ideia da Eudora surgir, as vendas diretas da marca principal devem ficar na geladeira por mais algum tempo, de acordo com o presidente da holding. "Vamos continuar a avaliar (essa possibilidade), mas será um movimento posterior", esclarece Grynbaum. Pelo menos até o segundo semestre deste ano, todas as forças para a "inauguração" de um novo canal de vendas dentro do grupo fundado há 34 anos estarão concentradas na novata Eudora.

TRÊS RAZÕES PARA…

Criar uma nova marca para as vendas diretas

1. O potencial de expansão das lojas está mais limitado. Em 2010, foram abertas 160 unidades; em 2011, serão 100.

2. Ao optar por uma marca completamente nova, a empresa não concorre com seus mais de 3 mil franqueados.

3. A empresa pode aumentar sua fatia no mercado, que hoje equivale à metade da participação da Natura.

(Fernando Scheller – O Estado de S.Paulo)

+ posts

Share this post